De Povos Indígenas no Brasil
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O Censo 2010 e os Povos Indígenas

por Marta Maria Azevedo, antropóloga e demógrafa, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População/Unicamp e pesquisadora colaboradora do ISA, publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2006-2010 (ISA)

As novidades do censo demográfico brasileiro realizado pelo IBGE em 2010 foram muitas, desde a utilização de um pequeno computador manual pelos recenseadores até novas perguntas no questionário, como aquelas relativas às populações autodeclaradas indígenas, incluindo etnia e línguas faladas.

Essas mudanças foram resultado de um longo processo coordenado por especialistas do IBGE, com ampla participação das instituições governamentais federais, da sociedade civil e da comissão de especialistas que assessora o censo; o IBGE realizou diversas provas-piloto nos anos anteriores ao censo, com diferentes versões do questionário, sendo que duas dessas provas foram especificamente voltadas à população autodeclarada indígena e populações residentes em Terras Indígenas.

Desde o início dos anos 2000, a invisibilidade estatística dos povos indígenas no Brasil (e também na América Latina e Caribe), bem como as possibilidades de melhoria nos sistemas de informações censitários, tem sido discutida em vários congressos de estudos populacionais e seminários específicos de Demografia Indígena promovidos pelo Grupo de Trabalho da Abep e pela Alap. Tais temas também foram debatidos nas reuniões e discussões promovidas pelo próprio IBGE que, em 2008, criou um grupo de trabalho para discutir a metodologia do censo 2010 relativa aos povos indígenas. Três recomendações importantes foram então acordadas: a) a pergunta sobre raça/cor da pele deveria passar do questionário da amostra para o questionário do universo;¹ b) além da autoidentificação como indígena na pergunta raça/cor da pele, dever-se-ia perguntar povo/etnia de pertencimento; c) as terras indígenas deveriam coincidir com o perímetro dos setores censitários.

A primeira questão da inclusão da pergunta no questionário do universo foi devido às grandes dificuldades que tínhamos em analisar as informações sobre os indígenas a partir de regiões ou áreas pequenas; nunca seria possível fazer análises por TIs, ou mesmo municípios, devido à rarefação dessa população e aos poucos números amostrados. Como para todas as análises sobre populações afrodescendentes, essa sempre foi uma questão problemática, no entanto a demanda se tornou imprescindível e foi facilitada agora com o uso do computador de bolso pelos recenseadores. Já a questão dos mapas e dos perímetros das TIs coincidirem com os setores censitários especiais foi um longo trabalho iniciado em 2007, junto com a Funai e também com a Funasa, para acertar a base cartográfica, integrando as informações populacionais, e conseguir uma base que realmente possa ser utilizada em futuras análises e nos planejamentos e monitoramento das políticas públicas.

As duas questões específicas sobre povo/etnia de pertencimento e línguas foram sendo definidas a partir de dois movimentos de discussões. De um lado, a criação de um Grupo de Trabalho sobre Línguas Indígenas, criado no âmbito do Ministério da Cultura com o intuito de inscrever as línguas indígenas como patrimônio imemorial cultural brasileiro. Esse grupo passou a ser a referência do IBGE para pensar sobre as línguas faladas por aqueles que se autoidentificassem como indígenas. A pergunta específica sobre pertencimento étnico foi discutida entre IBGE e Funai, com participação de especialistas, inclusive da ABA e do GT da Abep, e teve como referência a equipe do Instituto Socioambiental e a enciclopédia virtual Povos Indígenas no Brasil. Com isso foi criada uma extensa lista/biblioteca de etnônimos que poderiam ser referidos pelos indígenas quando consultados

Durante as provas-piloto duas outras questões surgiram: primeiramente, a pergunta raça/cor da pele não era muito inteligível para muitos indígenas, que preferiram outras categorias, como branco, pardo e até amarelo. Portanto, incluiu-se uma outra pergunta para todos os habitantes de TIs, quando não se autoidentificavam como indígenas na pergunta anterior: “Você se considera indígena?”, e, em caso afirmativo, perguntou-se sobre o pertencimento étnico, procurando assim incluir todos os habitantes das TIs.

Por fim, a respeito das perguntas que constam no questionário da amostra, foi realizada uma reunião com um grupo de especialistas para pensar em alternativas mais adaptadas às aldeias e domicílios indígenas, o que aparentemente deu um bom resultado. Incluíram-se, por exemplo, voadeiras e canoas como utensílios e meios de transporte, e outras características específicas das TIs. Para os recenseadores que foram aos setores especiais das Terras Indígenas foi feito um manual especial com recomendações sobre etiqueta para conversar com as lideranças indígenas e as famílias nos domicílios.

Os resultados desse primeiro censo com questões específicas para os povos indígenas ainda são preliminares. Não temos ainda os resultados do questionário da amostra, nem o perfil etário dos indígenas, embora já tenhamos inúmeras informações que por si só nos dão um retrato da população indígena e mostram as mudanças que se anunciam.

O Censo Demográfico de 2010: Primeiros resultados

Saiba mais

Veja o detalhamento dos dados, publicado em Agosto/2012 pelo IBGE, bem como correções de subenumeração dos primeiros resultados:

Os primeiros resultados do universo apontam para uma mudança importante na proporção da população branca em relação à população não branca (preta, parda, amarela e indígena), no Brasil 52,27% da população total são não brancos, ou seja, mais da metade de nossa população de declara como pertencendo a outra ‘raça/cor da pele’. Essa proporção aumenta nas regiões norte e nordeste, com mais de 70% da população tendo se declarado ‘não branca’. Apenas no sul a proporção da população ‘não branca’ permanece minoritária, porque mesmo na região sudeste quase metade da população não se declarou branca.


Tabela 1: Proporção da população não branca em relação à população total por região do Brasil em 2010
Região Nº absoluto população não branca Nº absoluto população branca Total Proporção
Norte 12.143.777 3.720.168 15.863.945 76,55
nordeste 37.452.977 15.627.710 53.080.687 70,56
sudeste 36.029.262 44.330.981 80.360.243 44,83
sul 5.895.638 21.490.997 27.386.635 21,53
centro-oeste 8.175.891 5.881.790 14.057.681 58,16
total 99.697.545 91.051.646 190.749.191 52,27

Fonte: Censo 2010 | IBGE.

Com relação à distribuição da população residente no Brasil por raça/cor da pele, temos um aumento da proporção dos ‘pardos’ e um pequeno aumento dos ‘pretos’, que perfazem os afrodescendentes, assim como um aumento da proporção da população indígena, de 0,43 para 0,44% da população total.


Tabela 2: População residente no Brasil, por raça/cor da pele em 2010
raça/cor da pele nº absoluto proporção
branca 91.051.646 47,73
parda 82.277.333 43,13
preta 14.517.961 7,61
amarela 2.084.288 1,09
indígena 817.963 0,44
total 190.749.191 100,00

Fonte: Censo 2010 | IBGE.

A proporção da população autodeclarada indígena no Brasil, desde que se incluiu essa categoria como resposta possível à questão da raça/cor da pele, tem aumentado bastante, mas podemos verificar que a ‘grande virada’ foi de 1991 para 2000, quando de 0,2% da população passou a 0,43%. Já de 2000 para 2010, tivemos um pequeno aumento na proporção, resultado de uma mudança na autodeclaração principalmente nas regiões sul e sudeste. No último censo, menos pessoas se autodeclararam indígenas naquelas duas regiões em relação ao anterior, realizado em 2000. É provável que tenha havido uma migração da declaração para a categoria ‘pardo’, principalmente.

Tabela 3: Proporção da população auto-declarada indígena em relação à população total do Brasil, nos censos 1991, 2000 e 2010
1991 2000 2010
nº absoluto 306.245 734.131 817.963
proporção 0,2 0,43 0,44

Fonte: Censo 2010 | IBGE.

Na região norte, vários fatores contribuíram para o aumento da população autodeclarada indígena: o crescimento vegetativo é um dos fatores principais desse aumento, seguido da melhoria da captação das informações com a ida efetiva dos recenseadores para as TIs, apoiados pela Funai, e de uma melhor declaração e reconhecimento das pessoas como indígenas. Os estados do Acre e Roraima, onde parecia haver uma subestimação da população indígena nos dois censos anteriores, no atual levantamento têm população muito próxima daquela contabilizada pela Funasa.

Nas regiões nordeste e centro-oeste, o aumento foi menos significativo. Provavelmente isso se deve de forma majoritária ao crescimento vegetativo dessa população nas TIs e menos ao reconhecimento de pessoas como indígenas, que anteriormente se declaravam 'pardas'. É como se o fenômeno do autorreconhecimento e da valorização da categoria 'indígena' tivesse chegado a um ponto de esgotamento. Quanto ao outro fator sociológico apontado anteriormente por José Mauricio Arruti no artigo Etnogêneses Indígenas, publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2001/2005, que foi o ‘aparecimento’ ou ‘ressurgimento’ de povos que já se consideravam extintos, esse fenômeno também parece ter decrescido ou influenciado menos o aumento da população indígena. Essas hipóteses poderão ser mais bem exploradas e analisadas quando os resultados por sexo, idade, povo e microrregiões forem divulgados.

No sul e sudeste, a população autodeclarada indígena foi menor em números absolutos do que aquela em 2000. Em todos os estados do sudeste, mas especialmente no Rio de Janeiro, em São Paulo e Minas Gerais, a população autodeclarada indígena no censo de 2000 parece ter migrado para outra categoria, possivelmente a ‘parda’. Poderíamos supor que a população nesses estados oscilou nos últimos dez anos entre se autodeclarar afrodescendente ou indiodescendente.

Tabela 4: Evolução da população autodeclarada indígena nos censos 1991, 2000 e 2010, por UFs e grandes regiões
1991 2000 2010
Região Norte 124.613 213.445 305.873
Rondônia 4.132 10.683 12.015
Acre 4.743 8.009 15.921
Amazonas 67.882 113.391 168.680
Roraima 23.426 28.128 49.637
Pará 16.132 37.681 39.081
Amapá 3.245 4.972 7.408
Tocantins 5.053 10.581 13.131
Região Nordeste 55.849 170.389 208.691
Maranhão 15.674 27.571 35.272
Piauí 314 2.664 2.944
Ceará 2.694 12.198 19.336
Rio Grande do Norte 394 3.168 2.597
Bahia 16.023 64.240 19.149
Paraíba 3.778 10.088 53.284
Pernambuco 10.576 34.669 14.509
Alagoas 5.690 9.074 5.219
Sergipe 706 6.717 56.381
Região Sudeste 42.714 161.189 97.960
Minas Gerais 6.118 48.720 31.112
Espírito Santo 14.473 12.746 9.160
Rio de Janeiro 8.956 35.934 15.894
São Paulo 13.167 63.789 41.794
Região Sul 30.334 84.748 74.945
Paraná 10.977 31.488 25.915
Santa Catarina 4.884 14.542 16.041
Rio Grande do Sul 14.473 38.718 32.989
Região Centro-Oeste 52.735 104.360 130.494
Mato Grosso do Sul 32.755 53.900 73.295
Mato Grosso 16.548 29.196 42.538

Fonte: Censos 1991, 2000 e 2010 | IBGE.

Com relação à presença indígena nos municípios brasileiros, dos 5.565 municípios, 1.085 não têm nenhuma população autodeclarada indígena, 4.382 têm menos do que 10% de sua população declarada indígena e 12 municípios possuem mais de 50% da população contabilizada como indígena, sendo eles majoritariamente da região norte e nordeste. São 86 os municípios com 10 a 50% da população indígena. Como a proporção varia muito de acordo com o tamanho dos municípios e a população indígena no Brasil é composta de muitos povos – 235 – com populações de pequeno porte (se compararmos, por exemplo, com o tamanho de outros povos indígenas da América Latina), a presença indígena em municípios brasileiros é bastante expressiva.

Tabela 5: Municípios no Brasil com mais de 50% de população indígena, em 2010
população total população indígena proporção de população indígena %
Uiramutã - RR 8.375 7.382 88,14
Marcação - PB 7.609 5.895 77,47
São Gabriel da Cachoeira - AM 37.896 29.017 76,57
Baía da Traição - PB 8.012 5.687 70,98
São João das Missões - MG 11.715 7.936 67,74
Santa Isabel do Rio Negro - AM 18.146 10.749 59,24
Normandia - RR 8.940 5.091 56,95
Pacaraima - RR 10.433 5.785 55,45
Santa Rosa do Purus - AC 4.691 2.526 53,85
Amajari - RR 9.327 5.014 53,76
Campinápolis - MT 14.305 7.621 53,28
Ipuaçu - SC 6.798 3.436 50,54

Fonte: Censo 2010 | IBGE.

Urbano x Rural? Mudanças de paradigmas

A presença indígena nas áreas urbanas tem crescido desde a inclusão da categoria indígena no censo de 1991, quando foi possível analisar e detectar esse fato. Os resultados de 2010 apresentam uma mudança, uma certa diminuição na proporção da população indígena residindo em áreas rurais. No Brasil, como um todo, 61% da população reside em áreas rurais, e nas regiões nordeste e sudeste essa proporção cai para 49 e 19%, respectivamente. Nas regiões norte e centro-oeste, a proporção de indígenas vivendo em áreas rurais é de 79 e 73% e no sul 54% das pessoas que se declaram como indígenas estão vivendo nas áreas rurais.

As primeiras análises do censo de 2010 nos instigam a investigar fenômenos que antropólogos e demógrafos apenas começaram a analisar, seja a multilocalidade dos povos indígenas e os próprios conceitos de rural e urbano do ponto de vista dessa população. Cidades indígenas têm surgido em TIs e já têm sido objeto de estudos antropológicos; bairros indígenas são comuns seja em grandes cidades como Manaus, ou em cidades próximas a TIs, como Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Há algumas décadas, geógrafos e economistas têm questionado o uso, desses conceitos e propuseram outras categorias como 'áreas rururbanas', ou 'aglomerados urbanos em áreas rurais'. A análise dos resultados desse censo deverá priorizar os trabalhos relacionados à migração, aos deslocamentos espaciais da população indígena em direção aos centros urbanos e, ao mesmo tempo, a sua presença - ou consideração de moradia principal - nas aldeias de origem.

[Agosto/2011]

Notas

¹ Os censos demográficos brasileiros possuem desde sempre dois tipos de questionários: um universal aplicado em todos os domicílios, e outro mais abrangente e completo, incluindo as perguntas que constam do universal, aplicados a uma amostra de domicílios que depende do tamanho do município.