“Eu quero ligar a TV e ter ali um conteúdo produzido por indígenas”
Renata Machado, do povo tupinambá, nasceu em Niterói (RJ) e trabalha como jornalista, roteirista, palestrante e produtora. Ao lado de Anápuáka Tupinambá e Denilson Baniwa, fundou, em 2013, a primeira rádio indígena online no país: a Rádio Yandê, que transmite ao público nacional as realidades e culturas dos povos indígenas no Brasil.
Eu tenho 28 anos, sou da etnia tupinambá. Eu nasci em Niterói e trabalho com comunicação indígena desde 2008. Minha família sofreu com essa questão de parentes que são obrigados a deixar suas terras. E as famílias vão se perdendo por esse Brasilzão... Mas dentro dessa questão da memória, da narrativa e da comunicação, o que os nossos avós passam para nós, isso fortalece quem nós somos. Então, aos 16 anos, eu comecei a ter contato com os parentes da mesma etnia e isso iniciou também meu processo dentro da comunicação indígena.
Em 2008, eu recebi um convite de uma grande comunicadora. Eu até me tremo em falar dela: Yakuy Tupinambá de Olivença. E, de lá, eu comecei, cada vez mais, a escrever textos, também a ajudar em outros processos, alguns trabalhos voluntários... E fui passando por diferentes projetos do terceiro setor: passei pela Rede Índios Online, como voluntária; passei pelo projeto Índio Educa, em 2011 se não me engano, com outros jovens de outras regiões e outras etnias — a Marina Marcos, de Mato Grosso do Sul, a Michele Machado, de Mato Grosso do Sul da etnia kaiowá, Amaré Krahô-Kanela, de Tocantins, o Alex Macuxi, de Roraima, e a Sabrina Taurepang, de Roraima. Sempre aprendendo muito com os parentes... E, dentro de todo esse processo, também foi nascendo essa questão da Rádio Yandê. Fui fazendo amizades. O Anápuáka Muniz Tupinambá Hã-hã-hãe já vinha há algum tempo tentando reunir uma equipe que pudesse elaborar um projeto voltado para a questão da comunicação, algo novo.
A gente rompe um processo de silêncio quando busca dar vozes a nós mesmos. Cada um de nós fala por si. E, de certa forma, isso também reflete na nossa etnia, no nosso pensamento, na nossa cultura. Então a gente vem trabalhando na etnomídia porque a comunicação indígena precisa ser trabalhada dentro de uma perspectiva que dá força à sua identidade.
Tanto eu como o Anápuáka — a família dele é lá de Pau-Brasil, na Bahia —, como o Denilson Baniwa, do Amazonas — lá bem de cima mesmo, do Rio Negro —, todos nós trabalhamos com comunicação há algum tempo, e por meio da Yandê, quando a idealizamos, quando a fundamos, buscamos justamente isso: ser protagonista da nossa história, não mais o objeto dela, em que o outro fala por nós.
A gente entra nesse processo de comunicação indígena, como outros também já haviam iniciado na década de 1970. Hoje, a gente sabe que um grande comunicador conhecido foi o Ailton Krenak, dentro do Programa de Índio, mas já havia também outros processos anteriores, por meio de algumas organizações indigenistas, que também faziam um jornalzinho indígena. [Como o Jornal Porantim, do Conselho Indigenista Missionário.]
O grande estopim da comunicação indígena foi na década de 1970. E quando a gente olha para esse cenário hoje, o quanto a gente evoluiu ou foi descobrindo de lá pra cá, foi justamente essa questão de você não ter que fazer uma cópia da mídia dos outros, mas descobrir qual é a sua própria mídia. Eu sou Tupinambá, eu penso de uma forma, eu faço a comunicação de uma forma. Um Xavante faz a comunicação de outra forma. Um Terena se expressa de outra forma. E é isso que dá força à nossa diversidade. Se a gente trabalha a comunicação copiando o formato jornalístico ou um formato padrão, a gente rompe um pouco com a nossa identidade na hora de comunicar. E é ela que traz a força à nossa comunicação. Então esse conceito de etnomídia que a gente [está] trabalhando na Yandê é justamente [para evitar] isso.
Eu sou uma das fundadoras e coordenadoras da Rádio Yandê. É a primeira web-rádio indígena do país. A gente queria falar isso com alegria, mas a gente fica triste por ser a primeira. Estamos em 2018 e ainda somos a primeira web-rádio indígena do país. Então a gente sabe que alguma coisa deve estar errada por ainda não haver outra. É um processo muito intenso de colonização, um processo de tutela, e tudo isso que os parentes passaram e ainda passam hoje.
A gente sabe que até 1988 a gente não era considerado sujeito enquanto indivíduo, não era considerado cidadão. Então esse pensamento tutelar permaneceu em muitos lugares. Em todas as relações que você pode imaginar: às vezes a gente chega na universidade, chega num doutorado, mas é sempre um olhar muito romântico, da grande maioria das pessoas, sobre quem nós somos. E, às vezes, a gente participa de projetos de diferentes coisas e esse olhar permanece. Às vezes a gente também não é visto como profissional, mas como o enfeite do projeto de outros. Então a gente busca cada vez mais essa questão do protagonismo, do fortalecimento da identidade, da autonomia, da autossustentabilidade. Porque a gente não está pedindo nada. Nós somos capazes e temos consciência da nossa capacidade.
E, como nós, existem também outros grupos no país. Muitas lideranças, muitos educadores que estão na base, na frente da luta, tentando romper com esse pensamento colonialista que prevalece na maioria das relações com o Estado. A gente sabe que só vai conquistar isso quando tiver a nossa autonomia de volta. Nossa real autonomia e independência. Então, hoje, quando as pessoas perguntam para gente "o que é comunicação indígena?", comunicação indígena é comunicar sem fronteiras geográficas, porque para nossos povos e para nossas culturas nunca existiram essas fronteiras entre os países, entre os estados. Nós sempre migramos, sempre caminhamos. E hoje a gente está restrito a espaços, como campos de concentração. Uma citação aí da Yakuy Tupinambá: “é como se nós vivêssemos em campos de concentração”.
Sempre é aquela visão de que o indígena está só na aldeia, mas hoje nós vivemos em contexto urbano também. Temos indígenas aldeados e urbanos. Tem os que já nascem no ambiente urbano. Então acho que tem muitos preconceitos, estereótipos a se vencer. É uma luta, principalmente, por essa questão das pessoas tomarem consciência de quem são os povos indígenas. E cada vez menos entenderem o índio como um personagem criado pelo colonizador.
Nós temos nossos nomes. Eu sou Tupinambá. Tem parentes que são Baniwa, tem parentes que são Tukano. Nós somos os nomes das nossas culturas, o nome das nossas etnias. E a figura do índio é um personagem para nós. É algo que a gente dá risada quando as pessoas imaginam sempre uma fantasia que não existe a respeito de nossas culturas. E isso dificulta muito nosso trabalho, nossas relações.
Mas a gente vai caminhando por esse direito à voz, por esse direito ao rosto. E por esse direito também à comunicação e a políticas públicas para a comunicação indígena, que não são discutidas no Brasil.
O Brasil está muito atrasado em relação ao que é a comunicação indígena e às nossas necessidades dentro da comunidade. Na América Latina, em países como México, Colômbia e Bolívia, já se fervilha essa questão das políticas públicas para a comunicação indígena, como um direito como qualquer outro direito, como a saúde, como a educação. E aqui no Brasil a gente ainda está num processo um pouco... ainda caminhando, né? Mas cada vez mais vêm muitas redes jovens, muitos jovens com vontade. Criando, cada vez mais, projetos para dar visibilidade às nossas causas, às nossas culturas e, principalmente, ao legado de nossos avós, aqueles que vieram antes de nós. Aqueles que sempre vão estar em nossas vidas. Porque não existe movimento, existe vida. A gente fala em movimento, mas o movimento é a nossa vida. É o nosso dia a dia, é aquilo que a gente vive e sente na pele. A gente sente na pele esses 518 anos.
ISA: Como começou a Rádio Yandê?
RT: A Rádio Yandê nasceu em 2013. Ela vem de um processo muito intenso, de nós fundadores: eu, o Anápuáka Muniz Tupinambá Hã-hã-hãe, o Denilson Baniwa. Nós três fundamos a Yandê, dentro desta proposta de sermos protagonistas da nossa história. Buscamos autonomia, buscamos independência para fazer um projeto somado de experiências anteriores que nós tivemos com comunicação indígena. Todos nós, fundadores, já trabalhamos há um bom tempo, há mais de 10 anos, dentro dessa área. E isso também foi fortalecendo a nossa visão das necessidades que a gente via no Brasil.
De início, a gente pensou em fazer um espaço de comunicação — uma rádio — que reunisse os conteúdos regionais das rádios comunitárias indígenas de diferentes regiões do país. Mas já nos primeiros anos da Yandê, a gente percebeu que ela foi rompendo fronteiras que a gente não esperava que rompesse. A gente também divulga artistas indígenas, músicos indígenas, que não encontram espaços em outros lugares para divulgar seus trabalhos. Artistas que trabalham músicas dos mais diferentes gêneros. Hip-hop, forró... Em línguas indígenas, em português. Mas por romper as fronteiras, hoje a Rádio Yandê tem um acesso de mais de 70 países diferentes.
Não temos nenhum patrocínio, continuamos trabalhando de forma autônoma e independente. E, ao mesmo tempo, sentimos a necessidade de cada vez mais ajudar outros parentes que estão neste processo comunicativo a fundar, não apenas suas rádios, mas seus próprios espaços de comunicação. Hoje a Rádio é acessada, por dia, mais ou menos por 5 mil ouvintes. E isso se alterna dependendo da época e dependendo do número de publicações. Tem dias que chega a 10 mil ouvintes, mas normalmente são 5 mil por dia, mesmo sem novas publicações.
E a gente, cada vez mais, tem buscado apoios. Apoios para a gente contratar profissionais indígenas, tanto da área, quanto de outras áreas. Profissionais que possam estar ali expressando, não apenas a sua identidade, [mas] a sua visão, a sua filosofia. E divulgando, denunciando as situações dentro das suas comunidades, ou fora delas. Mas um espaço também que a gente possa, cada vez mais, mostrar esse empoderamento e essa questão de que existem profissionais indígenas nos diferentes setores, que às vezes não são valorizados. E assim, como primeiro espaço, empresa, de comunicação indígena, isso também é uma coisa que assusta a gente.
A gente quer ver isso fervilhar. A gente quer ver mil rádios, milhões de rádios indígenas pelo país. A gente quer ver espaços de TV indígenas. Eu quero ligar a televisão e ter ali um conteúdo produzido por indígenas. Um desenho animado indígena. Eu quero conteúdo para o público indígena. Não apenas fazer conteúdo para o público não indígena. A Rádio Yandê sempre foi [feita] pensando nessa questão do público indígena, embora a gente atinja outros públicos e acabe ajudando nessa quebra de estereótipo, essa visão romântica do que é ser indígena, esse índio criado pelo colonizador.
Tem sido muito especial, e muito emocionante, estar à frente disso com meus amigos, a Dayara Tukano, o Idjahure Kadiwéu, e também meu esposo, Valdevino Terena, e vários outros colaboradores da rádio, por diferentes estados. E a gente tem se organizado neste sentido de mostrar que podemos ser a primeira, mas que todos os outros podem criar mais espaços independentes, mais espaços autônomos. Espaços que podem dar cada vez mais voz a todos. Porque nossa voz, ninguém dá a nossa voz à gente. A gente faz nosso canto, a gente solta nosso canto no mundo. E ele ecoa pelas gerações. E ele não para de ecoar, em nossas almas, em nossas cabeças, em nosso sangue. Dessa forma, a comunicação vai sendo transmitida para as próximas gerações, outras culturas, né? A cultura não é estática, ela sofre transformações, mas o que importa para a gente é manter o legado dos nossos anciões.
ISA: Qual recado você daria aos não indígenas?
RT: Todos os povos do mundo, todos nós indígenas, originários, pessoas vindas também de outros países... Seja europeu, seja norte-americano, seja asiático. Em todo lugar do mundo, a nossa essência e origem sempre foi tradicional e originária. Todos vocês carregam em sua genética o sangue de ancestrais, mas que, de certa forma, a cultura ocidental, nessa ocidentalização, modificou muito da essência de cada povo, de cada grupo cultural. A “racialização” é uma coisa muito... como eu posso dizer para vocês? Não “racializem” muito. Pensem sempre na memória, na identidade. E principalmente em quem vocês são, da onde vocês vieram, quem são suas famílias, como aqui chegaram, quem são aqueles mais antigos. Seja o tataravô, seja muitas gerações atrás. Porque todos os povos do mundo, todas as culturas, e todas as raças — não gosto muito do termo raças —, todas as etnias do mundo vieram de uma tradicionalidade.
Então, de certa forma, a gente está unido, e está nesse mundo junto. Então a gente tem que buscar formas de viver bem. Formas de bem viver. Formas de caminhar juntos para algo melhor, porque já não se separa mais o branco do negro, o indígena do branco, as diferentes etnias. A gente sabe o que vem por aí. Nossos avós sempre falaram para gente: "o futuro", né? Então a gente está se preparando para isso. E a gente sabe que a natureza não é uma coisa que se controla. Não se pode parar a chuva, não se pode parar as tempestades. E por não controlar isso e a gente sabe.
Nós, povos da floresta, nós, povos indígenas, nosso conhecimento, nosso saber é todo voltado para a terra, para a natureza. Nós temos muito a contribuir com todos, com aquilo que a gente aprendeu. E eu acho que é isso que a gente busca cada vez que a gente fala, cada vez que a gente mostra nosso rosto. União mesmo, porque vivemos, todos, processos muito difíceis no mundo. Seria mentira para vocês dizer que não vivemos uma guerra aqui no Brasil. Ainda vivemos uma guerra em que todos os dias pessoas estão morrendo. Pessoas indígenas, pessoas não indígenas. E no mundo também. Muita coisa está acontecendo. E essas transformações, se a gente não tem uma consciência de que estamos juntos, todos nessa mesma canoa que se chama humanidade, que vocês chamam de Terra, mas que nós temos outros nomes, de acordo com a nossa cultura, acho que vai ser muito difícil para todos nós. Mas eu acredito muito na raiz da qual todos nós viemos. Essa raiz que faz a gente cantar, mesmo quando parece que está morto e extinto no chão.
O meu povo, por muito tempo, foi dito como extinto, mas cobertos de sangue e lágrimas a gente renasceu. E a Funai nos reconheceu novamente em 2003. Então a gente entende esse processo. A gente passou por todo esse contato. E a gente viu que a nossa raiz não morreu, e a nossa identidade também não. Então a gente conhece esse processo, e tudo o que a gente deseja é compartilhar com vocês o que a gente aprendeu.
A entrevista acima foi registrada em 2018 na sede do ISA, em São Paulo (SP), por Isadora Fávero, Giovanna Marra e Maria Carolina Botinhon.